Está
tudo tão confuso que as pessoas não sabem muito bem o que dizer ou
pensar. A ordem natural foi alterada, mas teimamos em manter sua
construção intacta, para não implodir nossos alicerces de
certezas.
Hoje em
dia, colocam um pau num corpo de mulher, como pode? Ou colocam uma
mulher num pau sem corpo, ou colocam peitos em um corpo de homem que
tinha pau e virou mulher, ahhhh, não sei!É confuso demais para o
par binário que nos ensinaram. Ou é homem ou é mulher e pronto, ou
é bom ou é mau, ou é corpo ou é mente, não há lugar para mais
um, para o concomitante, para a ambivalência.
Aprendemos
assim a amar os dualismos que explicam tudo de forma tão calma e
suficiente. Ninguém passa da fronteira do outro e estamos assim
entendidos, certo? Não. Felizmente, tudo foi borrado e a vida se espalhou, trêmula e líquida, por milhares de arenas, de embates
tortos entre sexos, inquietudes, transtornos e incertezas. Precisamos
desconstruir, ampliar, desnaturalizar, porque o que é tido como
dado nos acomete sem nem notarmos, e aí, quando vamos ver, estamos
lá, repetindo que isso tudo existe desde sempre, nasceu assim, é da
natureza e é pra ser assim. Bem e mal,
maniqueisticamente definidos. Homem e mulher, separados.
Queremos
a mesma coisa?
Construção.
Somos matéria e construímos realidades. A realidade só existe
enquanto produção de sentido, se o sentido para o signo não
existe, ele não é signo e a realidade nada mais é que morta.
Assim, demos um sentido ao biológico, criamos os gêneros e tudo
passou a ser natural, advindo da mais pura essência, com a mais
tênue naturalidade. Devemos ser civilizados, gêneros muito bem separados. Mas e a civilização sempre existiu? Não. Ela é
datada e, no seu íntimo de ser calma, com seus mecanismos de
controle, ainda assim ela trastorna. Depois dela, pudemos, como
indivíduos, nos projetar. Não estávamos mais presos à
“introdireção”, tornamo-nos sujeitos “alterdirijidos” e
dali pudemos mudar muita coisa. Abrimos as portas de nossas casas,
nossa vida, buscamos incessantemente afirmação, identificação.
Precisamos ser, desesperadamente. Mas quem somos? O que somos? Aí então,
alegremente, mudamos e misturamos os sexos, ou seriam os gêneros?
Saímos
às ruas e precisamos identificar as pessoas. Nos incomodamos quando
não conseguimos dizer se é “ele” ou “ela”. Vestimos nossas
filhas de rosa e nossos filhos de azul na esperança de que a
realidade se construa para eles, assim, num mundo dicromático
simples e fácil de se entender e aceitar. Colocamos laços e brincos
em bebes idênticos. Então, posso dizer que nascemos “nada”, mas
biologicamente diferentes e definidos? O resto deu-se na construção:
feminino e masculino. O que diferencia dois bebês? Nus? O sexo, o
gênero? São duas coisas completamente diferentes.
Portanto
hoje, o dicotômico, o híbrido, o par binário transtornado e
desfeito, o ambíguo, o ambivalente, todos esses tomaram nossas
cidades e nossas ruas. Carnavalizaram o lugar da saturação no
cotidiano. Bagunçaram o nosso sexo.
E por
isso, “tudo que é sólido se desmancha no ar” ainda hoje, num
outro patamar, numa outra esfera, numa outra lógica, num correlato
de realidade líquida contemporânea. O que define uma mulher,
biologicamente falando, por exemplo? Ter uma vagina? Então por que
muitos transexuais não são considerados mulheres? Ah, preciso então
NASCER com uma vagina, mas o que seria do mundo se não vivêssemos
de transmutações, evoluções, transformações, construções e
desconstruções, seja pelo meio que for? Mas o homem não pode ousar
mudar a sua natureza, certo? Se assim o faz, ele encontra uma legião
para expurgá-lo de suas realidades e de suas vidas calmas e
binárias. Se não é homem nem mulher, então não é nada!
Precisamos
negar e criar algo novo, coisas novas. Mas insistimos em cantar em
coro um mundo onde se vive sem se misturar, onde não há a subversão
da ordem para carnavalizar o banal, não há a mistura de híbrido
para atormentar. Assim, não conseguimos encarar as idiossincrasias e
a alteridade do outro, nos trancamos. Nos fechamos na natureza
segura que por repetição já entendemos e sabemos de cor e
salteado. Memória hábito que insiste em se atualizar igual, todo
dia. Não percebemos, logo não agimos, a nossa não percepção
se configura numa não ação possível sobre o mundo que não
queremos mudar. Um mundo onde tudo é naturalizado, porque fica
mais fácil. Assim, pronto, estamos seguros, nada muda e não há o
caos. Mas não. Eu, você, nós não queremos isso.
Precisamos
de mais do que isso. Não podemos, não queremos aceitar o binarismo.
Queremos confundir, transtornar, enlouquecer, contradizer instaurar o
caos, a bagunça, a incerteza e o mal estar. A angústia boa dos
questionamentos contínuos.
Somos
tudo ao mesmo tempo, misturado, aglutinado, não sei onde começa um
e nem onde termina outro. Somos nada intrínsecos, somos a confusão
visceral na plena alteração da ordem.
Somos
nossos próprios viajantes e suas milhares de sombras.
Somos a
felicidade na vontade de repetição e saturação.
ou não....