segunda-feira, 30 de abril de 2012

Porque carnavalizar é preciso




Está tudo tão confuso que as pessoas não sabem muito bem o que dizer ou pensar. A ordem natural foi alterada, mas teimamos em manter sua construção intacta, para não implodir nossos alicerces de certezas.

Hoje em dia, colocam um pau num corpo de mulher, como pode? Ou colocam uma mulher num pau sem corpo, ou colocam peitos em um corpo de homem que tinha pau e virou mulher, ahhhh, não sei!É confuso demais para o par binário que nos ensinaram. Ou é homem ou é mulher e pronto, ou é bom ou é mau, ou é corpo ou é mente, não há lugar para mais um, para o concomitante, para a ambivalência.

Aprendemos assim a amar os dualismos que explicam tudo de forma tão calma e suficiente. Ninguém passa da fronteira do outro e estamos assim entendidos, certo? Não. Felizmente, tudo foi borrado e a vida se espalhou, trêmula e líquida, por milhares de arenas, de embates tortos entre sexos, inquietudes, transtornos e incertezas. Precisamos desconstruir, ampliar, desnaturalizar, porque o que é tido como dado nos acomete sem nem notarmos, e aí, quando vamos ver, estamos lá, repetindo que isso tudo existe desde sempre, nasceu assim, é da natureza e é pra ser assim. Bem e mal, maniqueisticamente definidos. Homem e mulher, separados.

Queremos a mesma coisa?

Construção. Somos matéria e construímos realidades. A realidade só existe enquanto produção de sentido, se o sentido para o signo não existe, ele não é signo e a realidade nada mais é que morta. Assim, demos um sentido ao biológico, criamos os gêneros e tudo passou a ser natural, advindo da mais pura essência, com a mais tênue naturalidade. Devemos ser civilizados, gêneros muito bem separados. Mas e a civilização sempre existiu? Não. Ela é datada e, no seu íntimo de ser calma, com seus mecanismos de controle, ainda assim ela trastorna. Depois dela, pudemos, como indivíduos, nos projetar. Não estávamos mais presos à “introdireção”, tornamo-nos sujeitos “alterdirijidos” e dali pudemos mudar muita coisa. Abrimos as portas de nossas casas, nossa vida, buscamos incessantemente afirmação, identificação. Precisamos ser, desesperadamente. Mas quem somos? O que somos? Aí então, alegremente, mudamos e misturamos os sexos, ou seriam os gêneros?

Saímos às ruas e precisamos identificar as pessoas. Nos incomodamos quando não conseguimos dizer se é “ele” ou “ela”. Vestimos nossas filhas de rosa e nossos filhos de azul na esperança de que a realidade se construa para eles, assim, num mundo dicromático simples e fácil de se entender e aceitar. Colocamos laços e brincos em bebes idênticos. Então, posso dizer que nascemos “nada”, mas biologicamente diferentes e definidos? O resto deu-se na construção: feminino e masculino. O que diferencia dois bebês? Nus? O sexo, o gênero? São duas coisas completamente diferentes.
Portanto hoje, o dicotômico, o híbrido, o par binário transtornado e desfeito, o ambíguo, o ambivalente, todos esses tomaram nossas cidades e nossas ruas. Carnavalizaram o lugar da saturação no cotidiano. Bagunçaram o nosso sexo. 

E por isso, “tudo que é sólido se desmancha no ar” ainda hoje, num outro patamar, numa outra esfera, numa outra lógica, num correlato de realidade líquida contemporânea. O que define uma mulher, biologicamente falando, por exemplo? Ter uma vagina? Então por que muitos transexuais não são considerados mulheres? Ah, preciso então NASCER com uma vagina, mas o que seria do mundo se não vivêssemos de transmutações, evoluções, transformações, construções e desconstruções, seja pelo meio que for? Mas o homem não pode ousar mudar a sua natureza, certo? Se assim o faz, ele encontra uma legião para expurgá-lo de suas realidades e de suas vidas calmas e binárias. Se não é homem nem mulher, então não é nada!

Precisamos negar e criar algo novo, coisas novas. Mas insistimos em cantar em coro um mundo onde se vive sem se misturar, onde não há a subversão da ordem para carnavalizar o banal, não há a mistura de híbrido para atormentar. Assim, não conseguimos encarar as idiossincrasias e a alteridade do outro, nos trancamos. Nos fechamos na natureza segura que por repetição já entendemos e sabemos de cor e salteado. Memória hábito que insiste em se atualizar igual, todo dia. Não percebemos, logo não agimos, a nossa não percepção se configura numa não ação possível sobre o mundo que não queremos mudar. Um mundo onde tudo é naturalizado, porque fica mais fácil. Assim, pronto, estamos seguros, nada muda e não há o caos. Mas não. Eu, você, nós não queremos isso.

Precisamos de mais do que isso. Não podemos, não queremos aceitar o binarismo. Queremos confundir, transtornar, enlouquecer, contradizer instaurar o caos, a bagunça, a incerteza e o mal estar. A angústia boa dos questionamentos contínuos.

Somos tudo ao mesmo tempo, misturado, aglutinado, não sei onde começa um e nem onde termina outro. Somos nada intrínsecos, somos a confusão visceral na plena alteração da ordem.
Somos nossos próprios viajantes e suas milhares de sombras.
Somos a felicidade na vontade de repetição e saturação.
ou não....

Nenhum comentário:

Postar um comentário